
Dia 4 - Uma tarde descontraída
Cheguei no Kaleidoscope por volta das 15h e a casinha verde estava incrivelmente cheia. A lotação era formada por clientes esperando para serem atendidos, outros combinando e marcando tattoos. Tinha ainda um tatuador do Pará, o Marcão, que veio ao Ceará participar de um evento e decidiu fazer uma visita aos amigos e colegas de profissão.
Com a balbúrdia finalizada, os trabalhos se iniciam. Animal recebe dois cliente de uma vez: um casal na faixa dos 50/60 anos de idade. Eles queriam fazer uma homenagem uma para o outro: o Peter Pan e a Sininho. A escolha não tinha nenhuma relação significativa com a história escrita por James Matthew Barrie; eles apenas queriam um personagem masculino e um feminino. Havia ainda outra peculiaridade nas tatuagens. A mulher, Cris, faria o menino na panturrilha, enquanto o homem, Juarez, sairia de lá com a fada no braço.
Com os desenhos escolhidos, é feita a análise das cores. Na estante de tintas, porém, estava faltando o marrom. A essa altura do campeonato, eu já era assistente do estúdio, tendo trabalhado esporadicamente como DJ - escolhendo no iPod apenas os álbuns que eu nunca tinha ouvido falar - e agora office-girl. “Olha aí, se precisar de emprego, já pode ser contratada aqui no estúdio. Tu deixa o currículo ali com a Patrícia e a gente entra em contato para fazer uma entrevista”, brinca Animal.
Quando eu voltei, Animal estava contando que perdeu a perna em um acidente de carro quando estava terminando o curso de Enfermagem e acabou desistindo de se formar. Cris revela que é enfermeira e explica que escolheu fazer o desenho na perna para poder esconder por causa da profissão.
Ela estava bastante nervosa, mas decidiu se riscar primeiro, para acabar logo. “Quando é mulher, é melhor, né? Vocês são mais delicados”.
“Mulher sente menos dor. Fica mais nervosa antes, mas depois da tatuagem pergunta ‘é só isso?’. Já homem se faz de machão e quando é no meio da tattoo, as lágrimas começam a escorrer”.
Pedrim concorda rindo. “Tem homem que chega aqui pra tatuar o universo e aí, depois que sente a dor, tira umas duas explosões, uns cinco planetas…”.
“E pode beber depois, Júnior?”
“Pode”.
“Tem certeza?”
“Rapaz… A única recomendação que eu dou é, se for cair, caia para o outro lado”.
“Mas não teve uma recomendação da Anvisa pra não beber?”
Júnior faz cara de sério. “É… a recomendação é uma semana sem beber e três sem transar”.
Juarez esperta. “Pera lá. Dá pra desistir da brincadeira, não? Devolver o dinheiro… Melhor ir à pra praia, tomar uma cerveja e comer um caranguejo”. Todos riem.
Animal então pergunta se Cris aprovava o local onde foi posto o stencil. “A tatuagem é sua”, ela responde. “Você entende mais do que eu. Dar pitaco aqui é a mesma coisa que ir ao médico e pedir uma aspirina pra dor de garganta”.
“Pois num é? Tem cliente que chega aqui pra fazer a primeira tatuagem e sabe mais do que a gente”, ironiza Júnior. “Dá vontade de dizer ‘rapaz, se tu quiser, eu alugo pra ti o meu equipamento e fico aqui curtindo nas redes sociais”.
“E ainda tem aqueles caras que soltam: ‘tu vai cobrar tudo isso só por esse nomezinho?’. Mas aí esquece que não pode tremer, tem que deixar o braço firme por um tempão, não pode errar…”, completa Pedrim enquanto termina de arrumar a bancada para começar a tatuar.
Ele tinha acabado de terminar o desenho no papel e mostrava ao cliente: um garotinho montava um quebra-cabeça e acima de sua cabeça surgia uma espécie de arcanjo templário protetor. “A gente vai começar e, se tiver doendo, avisa pra gente parar. Evita se mexer ou pode acabar ficando constrangedor pra você”.
“Olha aí…”, interrompe Júnior. “O cara ameaça. Depois o animal aqui sou eu”.
Depois dessa, ninguém consegue segurar o riso.
No som, uma baladinha. “E aí Cris, tá doendo?”.
“É incômodo, mas não tá doendo, não”.
“Mulher, tu foi muito corajosa. Veio primeiro”, comenta Júnior. “Se fosse eu, dizia pra ele ir antes. Aí, depois se eu visse o sufoco ia dizer só ‘se fudeu’, virava as costas e ia embora”.
De repente, começam a contar histórias de sogra. Cris diz que o Juarez devia tatuar o rosto da sogra nas costas e ele faz piada dizendo que tinha um aquário, mas que os todos os peixes morreram porque a mãe da companheira havia cuspido lá dentro.
“Pois eu gosto da minha. No começo do namoro com a minha esposa, ela me olhava meio assim… Mas também, era um cara todo tatuado e sem uma perna saindo com a filha dela. Mas depois ela foi me conhecendo e hoje é Deus no céu e o Júnior na terra”.
Juarez conta a história de quando conheceu o namorado da filha e revela que é socorrista do SAMU. “O Pedrim fez curso de socorrista”, anuncia Animal. De fato, em uma das paredes do estúdio tem um certificado do “Curso de Emergencialista pelo Corpo de Bombeiros” com o nome de Pedro Henrique Saraiva Lemos.
No som, Björk.
“Cris, acabei! Quer que eu tire uma foto, pra tu ver de óculos, olhar os mínimos detalhes e reclamar mesmo?”.
Ela aceita, confere e aprova. “Ficou linda! Mas vocês já viram isso, uma mulher tatuar o Peter Pan e o homem a Sininho?”.
“Não, mas já vi parecido. Mulher com tema masculino e homem com tema feminino”, responde Animal.
“Quero só ver a justificativa que ele vai dar pra Sininho”, reflete Cris.
“Ora… Vou dizer que é porque a minha gata é loirinha e tem a perna bem grossinha”, rebate Juarez. “E ainda vou dizer uma coisa. Vocês que são novim, não recomendo fazer uma coisa dessa. Mas eu? Depois dos 50 anos pode rasgar. Já passou da validade mesmo. Pode fazer o que quiser”, completou.
Mais ou menos uma hora e meia depois, a Sininho é finalizada e Pedrim encerra a primeira sessão da tatuagem do anjo. Ficaram faltando apenas alguns preenchimentos e sombras. Como todos ficam admirando o desenho, o homem finalmente decide dizer o significado.
“É uma homenagem ao meu filho. Ele é autista e dizem que os pais de crianças com autismo são uma espécie de anjo guardião, uma anjo azul”.
“Tatuagem de homenagem é massa”, concorda Júnior. “É o tipo de desenho que você nunca vai se arrepender, principalmente se a ideia foi bem amadurecida. Tá lindo”.
E estava mesmo. Melhor ficaria 15 dias depois.