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A marca de Luiza

Tatuagem é algo hipnótico. Não importa qual seja sua opinião relacionada à marca - a favor ou contra, admiração ou repúdio -, não tem como negar o caráter fascinante de um desenho feito na pele. Ele nunca mais vai sair de lá. Pelo menos não de forma natural. Ele vai acompanhar a pessoa por todos os momentos da vida. 

 

Seria, então, a tatuagem um rastro do tempo, feito as rugas e cicatrizes, repleto de histórias e memórias, ou um acessório permanente cuja função é embelezar e enfeitar o corpo?

 

Os dois. Nenhum. Mais que isso.

 

Tatuagem é uma aposta. Uma escolha feita levando em consideração fatores estéticos, encarando o corpo como suporte da arte. Uma lembrança ou um lembrete, que carrega o fardo de não se deixar esquecer algo ou alguém. Um desejo forte o suficiente para se fazer eternizar naquele momento. Um signo, um elemento representativo.

 

A estampa

 

Sempre quis ter uma tatuagem. Queria algo que adornasse a minha pele, porém que tivesse uma mensagem significativa o bastante que impedisse o desenho de perder sua razão de ser. Um rótulo que eu fosse capaz de carregar para sempre. Mas essa não era uma tarefa fácil; eu não tinha maturidade para fazer uma escolha que iria me acompanhar pelo resto da vida.

 

Algo mudou, porém, três anos atrás, em 2013. Enquanto fazia mais um trabalho envolvendo tatuagem e acompanhei uma amiga, Ana Paula Escher, para filmá-la fazendo sua quinta tatuagem, finalmente imaginei, e tracei desajeitadamente, a estampa que gostaria de ter em mim.

A inspiração veio das ampulhetas que desde a infância me fascinam. Um artefato construído para medir o tempo, mas também algo mais próximo e palpável de uma máquina do tempo, pois aquela medida esgotada era reciclada e voltava a correr novamente.

 

E os grãos que descem de um funil ao outro, de tão finos, são quase imperceptíveis para aqueles que não fixam bem o olhar no vidro e prestam atenção. Uma prova de que o tempo passa sem que percebamos o quanto ele corre e só notamos o resultado, quando ele chega na base.

 

Mas apenas um relógio de areia não era suficiente, pois o tempo corre de forma igual para todas as pessoas e o que difere um indivíduo do outro é o que ele faz para dar sentido àqueles momentos. Eu me cerco de palavras. A leitura e a escrita são minhas companheiras de longa data. Desde as revistas em quadrinho, os diários e cartinhas da tenra idade, até os livros e textos que na vida adulta são hobby e profissão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma ampulheta que, ao invés de areia, carrega tinta no topo que, enquanto desce, transforma-se em letras - 26 caracteres capazes de criar qualquer coisa. A vida é transitória e passageira, entretanto aquilo que você produz pode ser eterno. 

 

O traço descontínuo e as cores, no entanto, só foram definidos no final de 2015, após conversar com duas mulheres. Marina acredita que a linha da vida era algo irregular, Marília, que a ter cor era o mesmo que ter luz. Já eu, acreditei nelas.

 

A família

 

O desenho deveria ter sido gravado no corpo ainda em 2013. Mas a falta de dinheiro e coragem adiou o plano por um tempo. Entretanto, o fator mais agravante era a reação da família, que como muitas outras, via a tatuagem como um atestado de rebeldia e marginalidade.

 

Com a escolha de fazer mais um trabalho sobre tatuagem, veio a ideia de aproveitar o projeto e me fazer personagem. Se apenas a vontade de ter uma tattoo não fosse suficiente para me tatuar, a chance de fazer jornalismo gonzo seria. Pelo menos, serviria como mais um argumento.

 

Além do estereótipo tatuado em suas mentes, também complica o fato de eu ser de família católica. Minha avó, mãe e tias frequentam a igreja todos os domingos e dias 13 - são devotas de Nossa Senhora de Fátima. 

 

Elas admitindo ou não, a religião teve interferência na não aceitação do tatuar-se. Descobri isso ainda no colégio, quando uma amiga “da Igreja” destilou argumentos bíblicos que vetavam a tatuagem, a exemplo de: “Pelos mortos não dareis golpes na vossa carne; nem fareis marca alguma sobre vós. Eu sou o Senhor” (Levítico 19:28).

 

É possível achar os mais variados entendimentos cristãos relacionados a tatuagens, piercing, escarnificações, etc. Embora inda exista aqueles que condenam e “provam” que a bíblia proíbe irrefutavelmente a marcação do corpo, outros acreditam que as passagens devem ser interpretadas de acordo com o contexto no qual foram escritas e entendem que a tatuagem não é algo errado, mas algo que deva ser feito de forma consciente. Hoje há ainda aqueles que tatuam passagens bíblicas e motivos religiosos em si.

 

A opinião mais levada em consideração e responsável pela grande reflexão - e quase desistência - de fazer ou não uma tatuagem foi da minha mãe. “Não quero”, “não gosto”, “seria um desgosto”. Algo parecido com o que passou Ramon ao se riscar pelas primeiras vezes. “É a coisa de o filho ser a extensão do corpo dela, porque é a única coisa que explica ela ter ficado tão ofendida”, concluiu o tatuador.

 

Ironicamente, foi um dos argumentos da minha mãe que deu nome ao projeto. “Você não é nem boi pra ficar marcada na pele”.

 

No entanto, também havia na família aqueles que se empolgaram e incentivam a tatuagem: meu irmão e primas. Uma, inclusive, Rafaela Silveira, mesmo longe, foi cúmplice, entusiasta e consultora nos detalhes finais do desenho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O artista

 

Desenho definido, determinação afirmada, faltava decidir quem seria o responsável por dar forma a todas aquelas ideias. Para fazer uma tatuagem que tenha as mínimas chances possíveis de virar um arrependimento, um dos fatores chave é escolher um bom tatuador. 

 

Decidir o estúdio foi o mais fácil. Conhecia várias pessoas que foram tatuadas no Kaleidoscope Studio e já estava frequentando o estabelecimento para o “Marcado do Pele”, fazendo pesquisa e coletando dados para um “diário de estúdio”.

 

O tatuador, entretanto, foi mais difícil. O plano era acompanhar os “meninos” - Júnior Animal e Pedrim Moicano -, que estavam mais disponíveis e abertos para conversa, e ser tatuada por uma das “meninas” - Isa Montenegro e Amanda Roosevelt -, que tinham o traço mais delicado. Assim eu poderia usar todos os profissionais.

 

Finalmente, a tatuadora escolhida foi a Amanda, cujo desenho é caracterizado pelo pontilhismo, traço orgânico e trabalho em aquarela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A tatuagem

 

Devido a carga negativa pela qual ainda passa a tatuagem e o fato de ser a primeira, preferi fazê-la em um local que ficasse coberto. A escolha dessa parte do corpo também foi uma promessa à minha mãe. “Vai ficar escondida e a senhora não vai nem ver. A não ser que peça para olhar”. Logo, a costela foi selecionada, mesmo com todas as advertências de que esta era uma das partes do corpo mais dolorosas de se tatuar. E foi. Apesar de eu não ter referência para comparação. 

 

A dor varia entre mais leve e intensa à medida em que a agulha sobe a costela e se aproxima do seio. “É só controlar a respiração”, disse o Pedrim passando a mão na minha cabeça. “E tomar cuidado para não se mexer”, alertou Amanda.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois de todo o sofrimento, nada se compara ao prazer daquela sensação de papel toalha úmido e gelado passando pela última vez no seu corpo, sinalizando que acabou. Junta isso à alegria de ver o desenho finalizado em si. O sentimento é “passei por isso, então agora eu posso dominar o mundo”. Desde que não pegue sol, resseque ou machuque a tatuagem nos próximos 30 dias, é claro.

 

Uma observação ainda merece ser feita. Muito se fala sobre a dor de ser furado, mas esquecem de dizer que o pior vem depois. O fazer a tatuagem dura, no máximo, algumas hora, mas o incômodo... A gastura e coceira da cicatrização - unidos à impotência de fazer algo ao respeito - permanecem por dias. Esse sim é o período de arrependimento. Mas passa. O que fica é a marca.

 


 

Foto: João Pedro Silveira

Foto: João Pedro Silveira

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